A política brasileira tem sido palco de cenas bastantes inusitadas e curiosas, com personagens exercendo papéis que até então ainda não haviam assumido no script da recente história nacional. São episódios da vida real, comparáveis àquelas séries em que, inesperadamente, os vilões assumem o papel de heróis e vice e versa, deixando o espectador ligeiramente confuso.
Um desses episódios, que trago para a discussão, ocorreu na última semana, quando o governador Eduardo Leite (PSDB), do Rio Grande do Sul, assumiu-se homossexual durante entrevista ao jornalista Pedro Bial, da TV Globo. A ‘saída do armário’ do político tucano, que votou em Jair Bolsonaro nas eleições de 2018 contra o então candidato Fernando Haddad (PT), em vez de solidariedade, provocou uma reação inesperada de um dos ícones do movimento LGBTQIA+, Jean Wyllys.
Antes visto como um dos maiores defensores da causa, o ex-deputado federal e ex-BBB assumiu o (seu verdadeiro) papel de ‘vilão’ da história. Com ares de quem encara o público gay num viés puramente eleitoral, como propriedade de sua ideologia e do seu partido, atacou Eduardo Leite nas redes sociais, acusando-o de hipocrisia.
“Quando se é branco, rico e soldado da plutocracia e do neoliberalismo (…) fica fácil “assumir-se” gay (ainda que se negando) e catalizar a solidariedade acrítica dos cúmplices e ingênuos”, escreveu no Twitter o recém-filiado ao PT, mostrando sua verdadeira face. Quase uma homofobia velada, para espanto do público.
O mais novo honesto
O outro personagem cumprindo papel que não lhe cabe, é o ex-presidente Lula (PT). Livrado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de suas condenações na Operação Lava-Jato, ele está de volta ao páreo, e agora, com uma nova roupagem: tem sido um personagem crítico da corrupção e um fervoroso defensor das estatais, a exemplo dos Correios.
Em declaração recente a uma rádio de Salvador, defendeu as investigações levadas à cabo pela CPI da Covid-19 em relação às supostas irregularidades na negociação de vacinas no país, com críticas ao atual governo. Bem diferente de toda a ‘inocência’ que ele alegou em relação às acusações que lhe pesaram.
Lula, aliás, tem razão num ponto. É preciso investigar qualquer indício de irregularidades na compra de vacinas, de forma célere e séria. Mas não podemos elevar o ex-presidente petista ao posto de ícone de combate à corrupção. O papel que lhe cabe é outro, e não adianta disfarçar: o de protagonista do mensalão e do petrolão, dois filmes sobre corrupção que o Brasil jamais esquecerá.
E por falar nisso, o ex-presidente posicionou-se contra a privatização dos Correios (empresa que foi palco de escândalos de corrupção em seu governo). Alguém lembra da CPI dos Correios?
E por falar em CPI…
Tão inusitados quanto Jean Wyllys atacando um governador gay e Lula no ‘combate à corrupção’, são os episódios diários da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 no Senado Federal, cheia de personagens que tentam, também, assumir outro papel.
As cenas são pra lá de burlescas, graças aos seus protagonistas: velhos conhecidos da Justiça brasileira que assumiram papel de julgadores parciais. O ambiente lembra a Escolinha do Professor Raimundo, porém com personagens mais espertos.
São investigados que, amparados numa prerrogativa legislativa, desempenham arbitrariamente o papel de promotores, assistentes de acusação e até juízes, daqueles que nunca se averbam suspeitos. Entre burburinhos, cochicos e gritaria, sobram até decisões duvidosas, como prisão de depoente por… supostamente mentir!
“Quem nunca mentiu na cúpula desta CPI, permaneça como está!”
Em vez de conseguir resultados eficientes, a CPI provoca um misto de sentimentos paradoxais em seus espectadores, como uma série tragicômica: um dia, humor, em outro perplexidade. Mas sempre a sensação de que nada ali deve ser levado a sério.
Alguns personagens da CPI fogem à regra, salvam-se no olhar do público, mas não mudam o desfecho já traçado.
Quanto ao conjunto da obra, se o intuito do roteirista for agradar o público, talvez o efeito seja a descrença ou a indignação. Mas a série com todos esses episódios, recheada de personagens camaleônicos, já tem nome e pode ser assistida em tempo real: BRASIL ÀS AVESSAS. Está só começando.
Vamos pagar para ver?
Felipe Nunes
Jornalista pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB)