A quem pertencem as joias dadas ao ex-presidente Bolsonaro pelo regime da Arábia Saudita? Houve ou não houve sua indevida apropriação? Ocorreu um crime de sonegação de tributos no ingresso das joias no Brasil? Aconteceu algum outro crime na tentativa de reaver as joias retidas pela Receita Federal?
Antes de analisarmos juridicamente essa situação, é importante observar que esse ainda é um caso em andamento. Novos fatos são divulgados diariamente na imprensa, e todos os envolvidos apresentam diferentes versões e justificativas para o que aconteceu. Outros fatos poderão surgir após esse artigo, e a última palavra sempre é da Justiça.
Para analisar juridicamente essa situação, é essencial começar pelos fatos. Em outubro de 2021, o presidente Bolsonaro transmitiu uma carta para o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, informando que não poderia comparecer no lançamento da iniciativa Oriente Médio Verde, mas enviaria o ministro de Minas e Energia brasileiro, Bento Albuquerque.
No dia 26 daquele mês, o ministro retornou com a comitiva brasileira. Um assessor de Bento, Marcos André dos Santos, teve sua bagagem de mão inspecionada pela Receita Federal no aeroporto de Guarulhos. Nela, foram encontradas e retidas joias da luxuosa marca Chopard, avaliadas em R$16,5 milhões, entregues como presente do governo saudita para o presidente brasileiro.
Nos dias seguintes, o ministro Bento trocou correspondência com o Gabinete Adjunto de Documentação Histórica da Presidência, buscando dar aos presentes recebidos o “destino legal adequado”. O Gabinete informou que eles deveriam ser encaminhados ao setor para “análise quanto à incorporação ao acervo privado do presidente da República ou ao acervo público da Presidência da República”.
Um ano depois, em novembro de 2022, Bento solicitou à Receita Federal a devolução dos itens apreendidos para “que seja dado ao acervo o destino legal adequado”. No mesmo mês, o ministro encaminhou uma caixa com outros itens da marca Chopard, dentre os quais estavam um relógio, uma caneta e um anel, recebidos naquela mesma viagem e não apreendidos, para compor o acervo da Presidência no Palácio do Planalto.
Segundo a imprensa, a partir da apreensão das joias, foram seis tentativas do seu resgate junto à Receita Federal, sem sucesso. Na penúltima, em 28 de dezembro de 2022, o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens da Presidência, enviou uma carta para a Receita pedindo sua restituição. A Receita, por seu turno, informou reiteradamente que só liberaria os itens mediante pagamento dos tributos e multa, que somavam cerca de R$ 12,3 milhões.
Embora os fatos não estejam completamente esclarecidos, é relevante analisar as três questões jurídicas que mencionei no início do texto. Importante apresentar, desde logo, duas ressalvas: a análise aqui é jurídica e entendo que sempre que houver a comprovação de crimes, devem ser punidos, seja quem for o criminoso e sua cor partidária.
A primeira questão é a mais relevante: as joias, um presente do Estado estrangeiro ao então presidente ou sua esposa, devem ser consideradas bens públicos da União ou bens privados do presidente?
O precedente que lança luz sobre esse caso é o da apreensão de presentes de Estados estrangeiros em posse do ex-presidente Lula, que teve seu acervo auditado, junto com o da ex-presidente Dilma.
Lula e Dilma haviam incorporado ao seu patrimônio pessoal – acervo presidencial privado – a imensa maioria dos presentes que receberam. Uma auditoria técnica do Tribunal de Contas da União (TCU) demonstrou que ambos incorporaram ao acervo público apenas 2,11% dos presentes recebidos, meros 15 itens. Lula recebeu 568 e incorporou ao patrimônio da União apenas 9. Dilma recebeu 144 e incorporou somente 6.
O tratamento dado aos presentes era caótico, uma verdadeira bagunça. A análise técnica apontou que “não há sequer garantia de que todos os presentes (…) [recebidos de Estados estrangeiros] foram adequadamente registrados” e que “existe alto risco de extravio de bens”.
As oportunidades para desvios de presentes foram enormes nas gestões do PT, segundo o TCU: “foi verificado que: I) houve cerimônia de troca de presentes, porém não houve a incorporação do presente; II) não houve cerimônia, mas houve a incorporação de presente; e III) não houve menção de cerimônia nem a incorporação de presente, porém há declarações do Ministério das Relações Exteriores e registros fotográficos do DDH/PR de que houve troca de presentes”.
O trabalho técnico feito comprovou ainda que pelo menos 6 presentes dados a Dilma não foram restituídos, enquanto 74 dados a Lula desapareceram, incluindo obras de arte, resultando num prejuízo superior a R$ 200 mil. É isso mesmo que você leu: 74 presentes de alto valor dados a Lula simplesmente sumiram – puf! – e ninguém sabe o que aconteceu com eles.
Lula chegou a levar para um cofre no Banco do Brasil uma série de presentes, alguns deles itens de luxo, que foram depois apreendidos pela Operação Lava Jato. A própria Presidência pediu para a Justiça a incorporação de 21desses presentes ao patrimônio da União. Na época, a Justiça afirmou que “tratam-se especialmente de bens recebidos em cerimônias oficiais de trocas de presentes com chefes de Estados ou governos estrangeiros”. Notícias reportam que havia, por exemplo, esculturas (uma de Juan Miró), uma coroa, moedas antigas, uma adaga e espadas.
Analisando detidamente a quem pertencem tais itens, após auditoria e trabalho técnico minucioso, o Tribunal de Contas da União, em 2016, concluiu que todos os presentes recebidos por presidentes da República de Estados estrangeiros pertencem ao Brasil (à União Federal), com exceção dos itens de natureza personalíssima, tais como colares de condecoração e medalhas personalizadas, ou ainda daqueles de consumo direto do presidente, como “bonés, camisas, camisetas, gravata, chinelo, perfumes”.
Existem dois motivos para considerar os presentes como patrimônio público: primeiro, o presidente só os recebeu em razão do cargo, por exercer, transitoriamente, a função representativa do Estado brasileiro. Segundo, os presentes dados aos líderes estrangeiros, nas cerimônias de trocas de presentes, são adquiridos com verbas públicas. Por isso, faz sentido que os presentes recebidos em troca sejam também incorporados ao patrimônio brasileiro.
É, portanto, uma hipocrisia que petistas defensores e aliados de Lula fechem os olhos para os desvios comprovados praticados por Lula, para atacar fatos ainda não completamente esclarecidos que, na pior das hipóteses, são igualmente repreensíveis, relacionados a Bolsonaro. É o “punitivismo” seletivo típico daqueles que antes se chamavam de “garantistas”, mas que se tratava simplesmente de defensores de seus corruptos de estimação.
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Publicado originalmente em Gazeta do Povo, Por Deltan Dallagnol, deputado federal e ex-coordenador da operação Lava Jato em Curitiba.