Agências de checagem: a polícia da verdade que errou durante a pandemia

Publicado por: Felipe Nunes em

Uma reflexão sobre a checagem dos fatos / Foto: dowell via Getty Images

Por Daniel Reynaldo e David Ágape, especial para a Gazeta do Povo*

“Você pode continuar odiando os checadores”, esta foi a  frase de Cristina Tardáguila, jornalista fundadora da primeira agência de fact-checking do Brasil, a Agência Lupa, em resposta a questionamentos diante de uma polêmica ocorrida em novembro: o perfil no Twitter da Lupa publicou um dicionário com expressões alegadamente racistas que deveriam ser banidas. Os leitores foram unânimes em desaprovação.

O problema é que a Lupa cometeu erros em relação a aspectos etimológicos e semânticos. Mesmo que diversos colunistas e especialistas tivessem explicado que não há evidências de que as expressões possuam qualquer conotação racista histórica ou atual, a agência demorou três dias para deletar o texto original e publicar nova versão informando a existência de pontos de vista divergentes, mas ainda prescrevendo o abandono das expressões. Apenas quando o escritor Leandro Narloch publicou um texto crítico esmiuçando os erros cometidos, quase uma semana depois, a agência publicou um editorial admitindo expressamente o erro.

Talvez este tenha sido o primeiro erro admitido publicamente por uma agência de checagem e a ter grande visibilidade. Erros semelhantes aconteceram ao longo da pandemia de Covid-19 e muitas vezes não foram reparados. Afinal, quem checa os checadores?

Polícia da verdade ou do pensamento?

Desde o aparecimento da Covid-19, na cidade chinesa de Wuhan, no final de 2019, os discursos em torno da doença têm sido conflitantes. O debate público tornou-se palco de uma guerra de narrativas. A desinformação foi apresentada como grande vilã: milhões de pessoas poderiam morrer por causa de mentiras.

Assim, as agências de checagem se fortaleceram como uma espécie de “polícia de conteúdo” na internet, com poder de censurar publicações que desafiem as posições oficiais de órgãos como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e demais agências estatais e supra-estatais.

O movimento exacerbado pela pandemia não nasceu com ela: agências de checagem vêm controlando o debate público nas redes sociais nos últimos anos. Surgidas em meados de 2004, nos Estados Unidos, ditam o que pode e o que não deve ser compartilhado. Até agora este controle é exercido a partir de uma cooperação voluntária entre as empresas que controlam as redes sociais e as agências de checagem. O PL 2630/20, conhecido como projeto de lei das fake news, previa em seu texto original, o “uso de verificações provenientes dos verificadores de fatos independentes”, mas o texto atualmente em tramitação já não prevê o uso das agências de checagem como instrumento legal de controle da informação.

Inicialmente estas empresas tinham o objetivo de analisar discursos eleitorais nos Estados Unidos. Logo se espalharam por todo o mundo e ampliaram o foco para publicações em redes sociais e discursos em geral. Com o objetivo de profissionalizar o processo, foi criada a International Fact-checking Network (IFCN), sob responsabilidade do Poynter Institute, que traçou uma série de critérios para a criação e certificação das agências.

No Brasil, existem três agências certificadas pela Poynter: Agência Lupa, Aos Fatos e Estadão Verifica. Existem também outros projetos não certificados, mas que atuam no mercado e são usados como referência: E-farsas; Fato ou Fake, do grupo Globo; e o Comprova, projeto que reúne jornalistas de diferentes veículos de comunicação e é financiado pelo Google News Initiative e pelo Facebook Journalism Project.

Neste cenário, surgem hoje diversas questões: é possível atestar a falsidade de uma alegação com base na classificação feita por uma agência de checagem?  A existência de imprecisões em uma mensagem divulgada nas redes deveria ser argumento para proibir sua veiculação e punir seus veiculadores?

Segundo Fernando Schüler, cientista político,  há um enviesamento político na atuação de algumas dessas agências. Segundo ele, é possível identificar pela maneira como são feitas as análises, pelas escolhas curatoriais e até mesmo pelo perfil das fontes para as entrevistas veiculadas. “Isso é ruim, pois as agências de checagem poderiam cumprir um papel essencial no debate democrático. Mas, na medida em que optam por uma certa visão política, tendem a perder seu principal ativo: a confiança das pessoas, em uma sociedade plural”, diz.

Debates científicos em aberto tratados como concluídos

Em junho de 2020, a Lupa declarou em seu Twitter que era falsa a afirmação de que o novo coronavírus foi criado em laboratório. Em outra publicação, a agência foi ainda mais categórica e chamou de “teorias da conspiração” estas especulações.

Em fevereiro de 2021, a jornalista Paula Schmitt ironizou no Twitter a comitiva oficial enviada pela OMS para investigar o laboratório de Wuhan e tentar descobrir qual a origem do vírus. Uma matéria do Daily Mail anunciava que a comitiva não tinha ainda descoberto “como o vírus havia pulado de animais para humanos”, mas que “já descartava algumas teorias laboratoriais”.

Entre os pontos apontados pela jornalista estava a presença do zoólogo britânico Peter Daszak na equipe enviada pela agência de saúde da ONU: “Só o fato de o Daszak estar nessa equipe “investigativa” já deveria ser razão para desmerecer os trabalhos”, defendeu Paula.

Daszak lidera o grupo de pesquisas EcoHealth Alliance, cuja missão anunciada é a de prevenir novas doenças infecciosas. Acontece que o EcoHealth Alliance tinha, desde 2004, um programa conjunto de pesquisas em parceria com o mesmo instituto de pesquisas chinês de onde há suspeitas que o vírus possa ter escapado: o Instituto de Virologia de Wuhan.

Mas o tuíte foi criticado por Daniel Bramatti, diretor do “Estadão Verifica”, que fez a seguinte reclamação: “Eu não acho legal acusar alguém em público, ou lançar suspeitas, com base em… suspeitas”. Para Daniel, a tese de vazamento laboratorial também não passaria de teoria da conspiração.

Com base em checagens destas agências, Facebook e Instagram proibiram menção à possibilidade de origem laboratorial do vírus, e postagens eram excluídas e os usuários que insistissem poderiam ser banidos. Embora houvesse uma controvérsia científica viva, as agências de checagem trataram como uma discussão definitivamente encerrada. Foi necessária a publicação de um artigo na prestigiosa revista científica Science para que o Facebook voltasse atrás em sua decisão de censurar o debate.

A decisão do Facebook, baseada em checagens equivocadas, de proibir que a possibilidade de origem laboratorial do vírus só foi revista em maio de 2021, mas já em novembro de 2020 o geneticista Eli Vieira escrevia para a Gazeta do Povo alertando que a origem laboratorial do covid-19 devia ser considerada uma hipótese plausível.

Erros em sequência

A controvérsia envolvendo a origem do vírus não foi um exemplo único. Em 27 de março de 2020, a Lupa classificou como falsa a alegação de que era recomendável que todos usassem máscaras nas ruas. Com base na opinião do médico Drauzio Varella, a agência também informava que as máscaras não serviam como prevenção. No dia 06 do mesmo mês, a Aos Fatos já havia afirmado que “Diferentemente do que muitos acreditam, o uso de máscaras não tem grande eficácia na prevenção da infecção.”

Entretanto, em setembro do mesmo ano, a Lupa publicou a checagem intitulada “#verificamos: é falso que uso de máscaras caseiras não protege contra a Covid-19” e classificou como falsa uma afirmação oposta. A agência afirma que tanto as máscaras cirúrgicas como as feitas de tecido são úteis na prevenção. Uma das justificativas apresentadas pela agência para a conclusão defendida nesta checagem foi um estudo publicado na revista científica inglesa The Lancet, baseado na revisão de vários estudos anteriores.

A maioria dos estudos revisados pelos autores deste artigo já estavam disponíveis em 27 de março, isto é: a maior parte das evidências consideradas pelos autores do artigo da Lancet já estavam disponíveis na data em que a Lupa afirmou que as máscaras não eram recomendadas para todos e que não deveriam ser utilizadas como prevenção.

Segundo a metodologia divulgada pela própria Lupa, “falso” é uma etiqueta de checagem que deve ser exclusivamente aplicada a alegações “comprovadamente incorretas”. Para questões cuja verdade não pode ser definitivamente estabelecida, a Lupa informa que são utilizadas etiquetas como “ainda é cedo para dizer”, “insustentável” ou “de olho”.

Todavia, o próprio artigo científico apresentado como referência pela agência indica que o estudo tem limitações. Os pesquisadores destacam como principal limitação o fato de que nenhum dos estudos revisados era randomizado. Eles também indicam baixa confiança nos efeitos positivos estimados para o uso de máscaras, esclarecendo textualmente que existe um alto risco de os efeitos reais serem muito diferentes dos estimados a partir da investigação conduzida por eles. E apontam, adicionalmente, que mais pesquisas de alta qualidade, incluindo ensaios randomizados sobre a distância física ideal e a eficácia de diferentes tipos de máscaras na população em geral e para a proteção dos profissionais de saúde, são necessárias com urgência.

Desta forma, nem a alegação de que máscaras são recomendáveis para todos (tratada como falsa pela Lupa em março de 2020) nem a alegação de que máscaras caseiras não protegem (tratada como falsa em setembro) poderiam receber esta classificação, segundo os critérios da própria Lupa. Sendo esta uma questão ainda em aberto e carente de estudos rigorosos, não se pode afirmar categoricamente que uma ou outra alegação seja “comprovadamente incorreta”.

As agências Aos Fatos e Estadão Verifica realizaram checagens sobre o Estudo de Cloroquina de Manaus, onde 22 pessoas morreram, e afirmaram que nenhuma foi por superdosagem. Mas estas checagens utilizaram apenas a versão oficial da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, como uma espécie de argumento de autoridade, e não se atentaram ao fato de que ainda há uma investigação em curso sobre o caso. Não houve análise da toxicidade da dosagem de cloroquina aplicada no estudo, e nem foi levado em conta o depoimento do médico infectologista Francisco Cardoso, que explicou na CPI da Pandemia o porquê de ter havido superdosagem. Sobre a Conep, a Gazeta do Povo já revelou em reportagem o conflito de interesses entre seu coordenador e o pesquisador responsável pelo estudo de Manaus.

Quem não checa os checadores

Para que as agências sigam certificadas, devem seguir à risca um código de princípios que assegura a qualidade do trabalho realizado, como o comprometimento com a não-partidarização; com a transparência de fontes, de financiamento  e de metodologia; e com correções abertas e honestas. Este último critério levou o bancário de 37 anos, Rômulo Araújo, a enviar uma série de emails para a área de correção Agência Lupa apontando diversos erros que encontrou  em suas checagens.

Ele conta que fez diversas tentativas de contato com a agência Lupa para informar sobre erros e imprecisões no texto: “Em anúncio, grupo de médicos usa informações falsas para defender tratamento ineficaz contra Covid-19”. Entre os erros apontados por Rômulo, há discrepâncias factuais evidentes.

Um dos artigos mencionados como fonte pela Lupa foi um estudo conduzido por pesquisadores brasileiros e publicado no New England Journal of Medicine. Este estudo foi um ensaio aberto, a Lupa afirmou que se tratava de um estudo duplo-cego. Em outro erro factual, a Lupa afirma que os voluntários receberam a medicação exatamente quatro dias após exposição ao vírus. Entretanto, o texto do artigo informa que o limite foi de até 14 dias após o início dos sintomas e que a mediana foi de sete dias.

Rômulo enviou mensagens para o e-mail da agência em abril de 2021, alertando sobre a presença destes erros factuais claros e de uma série de outras imprecisões e incoerências. Também fez sugestões relacionadas à linha editorial como omissão de fatos e falta de clareza. As correções e críticas foram ignoradas pela agência. Após aguardar cerca de dois meses desde o primeiro contato, Rômulo resolveu acionar a IFCN,  do Poynter Institute, mas também nunca foi respondido. Então ele decidiu por conta própria buscar a reportagem da Gazeta do Povo para contar sua história.

“Ao ver a fragilidade do processo, a má qualidade do serviço de checagem e a recusa de correção, provavelmente motivados por questões políticas, achei que era vital trazer essa informação à tona”, diz Rômulo sobre quais eram as suas motivações ao buscar a imprensa.

Sem resposta

A reportagem da Gazeta do Povo também não obteve respostas. Ao ser indagado sobre os critérios de seleção do conteúdo a ser checado pelo Estadão Verifica, sobre suas fontes de financiamento e sobre o processo de International Fact Checking Network (IFCN), o próprio Daniel Bramatti se limitou a responder: “Oi, Rodrigo! Não vamos nos manifestar”, errando o nome do repórter que entrou em contato.

As agências Lupa e Aos Fatos não responderam nossos contatos.

Baybars Örsek, diretor da IFCN, disse à Gazeta do Povo que o processo de avaliação e revisão ocorre todos os anos para cada organização signatária certificada e que já ocorreu de organizações serem expulsas da rede devido a violações do seu código de princípios. Baybars também disse que as reclamações enviadas à IFCN são apreciadas por avaliadores todos os anos durante as renovações e que não são respondidas individualmente as reclamações, a menos que mostrem um padrão de violação do Código de Princípios do IFCN.

Solicitamos mais informações a Baybars sobre as organizações expulsas de sua rede e sobre a ausência de resposta ao questionamento de Rômulo, mas não obtivemos mais retorno

Fonte: Gazeta do Povo

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